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O que é que acham?
“Já tivemos chefes de Governo que eram muito chegados aos seus conselheiros, mas nunca pessoas que parecem controlar o trabalho dos ministros. Ele comporta-se como um autêntico vice-primeiro-ministro. É como se o Reino Unido estivesse a ser governado por alguém que não foi eleito.” O aviso é de um dos mais prestigiados académicos britânicos, Timothy Paul Bale, professor na Universidade Queen Mary, em Londres. Quanto ao alvo do seu comentário, dá pelo nome de Dominic Cummings, o todo-poderoso estratega e conselheiro especial de Boris Johnson, o primeiro-ministro do país.
Comecemos por um recente incidente, no interior do número 10 de Downing Street, para que se fique a perceber do que é capaz esta personagem nascida há 47 anos, em Durham, no Norte de Inglaterra. No final da tarde de 29 de agosto, Sonia Khan, principal conselheira do ministro das Finanças, é chamada para uma reunião urgente na residência oficial do chefe de Governo. Ao entrar, é imediatamente acompanhada para uma sala onde a esperava Dominic Cummings. Este último, frente a vários outros assessores, acusa-a de ser uma “traidora” e de promover fugas de informação para a Imprensa. Surpreendida e sem capacidade de resposta, Sonia obedece ainda quando lhe são pedidos os seus dois telemóveis – um para os contactos oficiais, o outro para os pessoais. Com os aparelhos desbloqueados, Dom – como também é conhecido, embora haja cada vez mais gente a chamar-lhe Darth Vader – começa a inspecionar as listas de chamadas. Alguns minutos depois e com a tensão ao rubro, o estratega do primeiro-ministro diz-lhe que ela está despedida. Motivo: andou a falar com elementos da equipa de Philip Hammond, o ex-ministro das Finanças e deputado conservador que tem sido um dos rostos da oposição interna a Boris Johnson e que defende uma saída negociada com a União Europeia.
Sonia Khan ainda tenta defender a sua honra e explica que se limitou a falar com um antigo colega de trabalho e amigo. Em vão. Aos berros, Cummings explica-lhe que a decisão está tomada e que ela pode arranjar outro emprego. Mas o incidente, relatado com todo o pormenor pelos órgãos de comunicação social britânicos, não acaba aqui. Com ar enlouquecido, Dom decidiu igualmente chamar um elemento da Scotland Yard para acompanhar Sonia Khan até à rua. As várias testemunhas nem queriam acreditar: “O que ele anda a fazer é nojento. Pavoroso!”, afirmou ao diário The Guardian alguém que preferiu não se identificar por razões óbvias. No dia seguinte, foi a vez de o ministro das Finanças, Sajid Javid, ir pessoalmente a Downing Street pedir satisfações a Boris Johnson, manifestando a sua indignação por ninguém lhe ter dito nada sobre Sonia Khan e por entender que Dominic Cummings está “fora de controlo”. Claro que o protagonista desta história saiu incólume de todo o processo, apesar dos numerosos protestos. Um antigo diretor da Scotland Yard, Dal Babu, afirmou que deveria haver uma investigação ao que se passou a 29 de agosto, com vários dirigentes conservadores e da oposição a partilharem a mesma opinião e a denunciarem a “cultura do medo” e o “reino de terror” instituídos pelo antigo e brilhante estudante de Oxford. O mais curioso é que tudo isto era mais do que previsível. Em meados de julho, Boris Johnson contratou Dominic Cummings com a missão de consumarem o divórcio com a União Europeia até 31 de outubro, de neutralizarem Nigel Farage (o eurofóbico líder do Brexit Party) e de esmagarem Jeremy Corbyn e o resto da oposição, na eventualidade de haver eleições legislativas antecipadas. O desafio foi logo aceite por Dom mas, tal como fizera em 2016, quando o incumbiram de chefiar a campanha do Leave, exigiu liberdade total para fazer o que lhe desse na real gana – com um pormenor adicional. Além de autonomia nas decisões, exigia ainda fidelidade incondicional. E, como a maioria dos jornais britânicos informou no final de julho, a primeira reunião organizada por Cummings em Downing Street serviu para ele transmitir uma mensagem muito clara a todos os colaboradores: “Quem discutir as minhas decisões pode considerar-se despedido.” A sorte de Sonia Khan demonstra que ele aparenta ter muitos e grandes defeitos, mas é um homem de palavra.
Filho de um engenheiro e gestor da indústria petrolífera e de uma professora, Dominic Cummings fez uma estranha opção de carreira quando terminou os seus estudos em História Antiga e Contemporânea. Entre 1994 e 1997, viveu e trabalhou na Rússia, onde se apaixonou pela língua e pelas obras de Dostoiévski, de Tchékhov e, sobretudo, de Tolstói – sabendo de cor páginas inteiras do romance Anna Karenina. O seu percurso em Moscovo está envolto em algum mistério, mas tudo indica que foi um dos muitos estrangeiros que aproveitaram a implosão da União Soviética para se lançarem nos negócios e faturarem à custa do caos reinante durante a presidência de Boris Ieltsin. É também esta herança russa que leva muitos dos seus detratores a chamarem-lhe Beria – devido a Lavrentiy Beria, antigo chefe da polícia secreta estalinista e um dos maiores torcionários do período soviético.
No entanto, quem melhor conhece Dominic Cummings afiança que uma das suas figuras inspiradoras é o coronel John Boyd, um antigo piloto da Força Aérea dos EUA. Também apelidado The Mad Major e Genghis John, este antigo conselheiro do Pentágono era uma figura carismática que lidava mal com a autoridade, mas que influenciou milhares de militares e de gestores com as suas teorias sobre como se deve reagir a um determinado acontecimento para derrotar os adversários, nomeadamente o conceito de OODA Loop (do modelo ou ciclo, em inglês, “Observe + Orient + Decide + A
O currículo de Cummings atesta-o. Ele não se move por cargos, dinheiro ou honrarias. E não perde nunca uma oportunidade para dizer o que pensa, doa a quem doer. No início do século, quando se tornou um verdadeiro spin doctor (consultor político), deu mostras do seu euroceticismo e aceitou trabalhar para o então líder do Partido Conservador, Iain Duncan Smith. O seu objetivo era combater o governo trabalhista de Tony Blair e impedir que Londres abdicasse da libra e desse luz verde à substituição da moeda britânica pelo euro. Foi bem-sucedido, mas demitiu-se logo a seguir e assinou uma coluna de opinião a explicar que Duncan Smith era um “incompetente” e que, caso chegasse ao poder, seria “um primeiro-ministro ainda pior do que Blair”. O desemprego e o tempo livre levaram-no a passar largas temporadas na quinta da família, em Durham, onde aproveitou para estudar, ler e aprofundar os seus conhecimentos de russo e de matemática. Sabe-se agora que, no último quarto de século, a dita propriedade recebeu mais de 235 mil euros em subsídios agrícolas da União Europeia, mas que isso nunca alterou a postura anti-Bruxelas de Cummings.
Em 2007, acabava-se o retiro em Durham e Londres voltava a chamar Dominic. Desta vez, o convite era feito por Michael Gove, um antigo militante trabalhista que mudou para os tories quando frequentava a Universidade de Oxford, onde conheceu Boris Johnson e David Cameron. Três anos depois, Gove era ministro da Educação, e Cummings o seu principal assessor e chefe de gabinete. Uma oportunidade única para mostrar o que valia. As suas opiniões e comentários faziam com que o seu sucesso fosse proporcional às inimizades que ia alimentando. Desbocado como sempre, descrevia sindicatos, professores e funcionários públicos, em geral, como “the blob” – ou “amiba”, numa referência ao filme de ficção científica homónimo, estreado em 1958, no qual entrava Steve McQueen e cuja história se resumia a um ser extraterrestre e gelatinoso que invade o planeta e engole a civilização. Uma vez, desafiou diretamente uma proposta do vice-primeiro-ministro, o liberal democrata Nick Clegg, ao dizer publicamente que ele bem podia esperar sentado até haver refeições gratuitas nas escolas. O facto de nunca se ter inscrito como militante do Partido Conservador também lhe permitiu criticar impunemente vários dirigentes tories, como é o caso de David Davis, também ele um eurocético dos quatro costados, acusado por Cummings de ser um “bronco” e “preguiçoso como um sapo bexigoso”. Mimos pelos quais acabaria por pagar caro, com o primeiro-ministro David Cameron a dizer, em 2014, que Dominic era um "psicopata de carreira". O assessor veio a demitir-se mas, curiosamente, nunca se conheceram pessoalmente.
O ambiente de crispação dentro dos tories por causa da União Europeia acabou por baralhar os planos de Dominic passar mais tempo com a mulher, a aristocrata Mary Wakefield, editora da revista, quase centenária, The Spectator. E no início do verão de 2016, acaba por saborear a maior vitória política da sua vida. No referendo realizado a 23 de junho desse ano, 51,8% dos eleitores britânicos (17,4 milhões de pessoas) votam a favor do Brexit. É o corolário de uma campanha de praticamente um ano em que ele, como diretor, usou de todos os truques para alcançar a vitória. O famoso slogan “Take back control” (“Retomemos o controlo”, do Reino Unido entenda-se) é da sua autoria, tal como a decisão de pôr autocarros vermelhos pelo país a informar que Londres pode e deve deixar de pagar à União Europeia 350 milhões de libras por semana, para que esse dinheiro seja investido no NHS, o sistema nacional de saúde (público). Pelo meio, ainda espalhou rumores absurdos – como a possibilidade de 70 milhões de turcos entrarem no Reino Unido face à iminente adesão de Ancara à UE. No entanto, como várias investigações acabariam por demonstrar, Dominic Cummings contou com a preciosa ajuda de empresas especializadas em big data (sobretudo a AggregateIQ ) que o ajudaram a seduzir e a mobilizar eleitores indecisos e mal informados, através das redes sociais. Por outro lado, a campanha do Leave foi formalmente acusada de ter violado as regras de financiamento eleitoral, ao ter ultrapassado o patamar máximo de sete milhões de libras, através de expedientes ilícitos e de doações que continuam por explicar. Como se não bastasse, Cummings foi ainda acusado de desobediência pelo Parlamento, em março, por se recusar a prestar esclarecimentos sobre os seus métodos políticos. O spin doctor, que é também admirador de Sun Tzu e de Bismarck, alega estar inocente e nega, por exemplo, ter contado igualmente com o auxílio da Cambridge Analytica, a famosa empresa que geriu clandestinamente milhões de dados e de perfis do Facebook. No entanto, não deixa de ser espantoso que o desempenho de Cummings, nas últimas seis semanas, coincida com as novas divisões entre os habitantes do Reino Unido por causa do Brexit. O país, no entender de muitos analistas, está a viver a pior crise constitucional dos últimos 350 anos, e há uma forte possibilidade de tudo isto se prolongar. É que Dominic Cummings é um verdadeiro “engenheiro do caos” – expressão do ensaísta italiano Giuliano da Empoli – e basta ir ao seu blogue para o perceber. No texto que aí publicou a 27 de março, intitulado As ações têm consequências, adverte os seus adversários de que está pronto para um novo referendo e que eles continuam sem perceber o que lhes aconteceu nos últimos três anos: “Vencê-los de novo e por uma vantagem maior será mais fácil do que em 2016.”
05.10.2019
http://visao.sapo.pt/2. Devido à influência de Cummings, o primeiro-ministro Boris Johnson decidiu afastar no final de setembro dois conselheiros históricos do Partido Conservador, sir Lynton Crosby e Will Walden. Para os meios de comunicação social britânicos não há quaisquer dúvidas: Boris já só aceita dicas de duas pessoas: a namorada, Carrie Symonds, e Dominic Cummings.
3. O estratega mor do Governo britânico tem sido comparado a Rasputine, o místico e polémico conselheiro do último czar da Rússia, mas os tablóides e o resto dos media usam outras alcunhas para Dominic Cummings: Darth Vader, o vilão da saga Star Wars; The Mekon, a personagem malvada de uma banda desenhada dos anos 60 do século passado; e Beria, o líder da antiga polícia política soviética, no tempo de Estaline.
4. A 3 de setembro, enquanto Boris Johnson anunciava aos deputados britânicos a suspensão do Parlamento durante cinco semanas para impor um hard Brexit e formalizar a saída da União Europeia a 31 de outubro, Dominic Cummings decidiu aparecer e circular de forma provocadora nos corredores parlamentares, de copo de vinho na mão.
5. Na primeira semana de setembro, Cummings terá confessado a alguns amigos e colaboradores que só votou uma vez na vida: no referendo de junho de 2016, em que 52% dos britânicos se manifestaram a favor de uma saída do país da União Europeia.
6. Apesar do Supremo Tribunal ter considerado ilegal a decisão do Governo de suspender o Parlamento e de uma série de outros revezes políticos, Boris Johnson permanece fiel à estratégia definida por Cummings: saída formal da UE no dia das Bruxas, convocar eleições legislativas antecipadas e, se necessário, realizar um novo referendo sobre a UE. O estratega que criou o novo slogan usado pelo Executivo, Get Brexit done (vamos fazer acontecer o Brexit), está convencido que pode esmagar a oposição numa eventual ida às urnas e as sondagens dão-lhe razão. Os tories levam dez pontos de vantagem sobre a oposição, o partido ganhou mais de 25 mil novos militantes desde o início do verão e as doações e os financiamentos estão a crescer a um ritmo nunca visto nos últimos anos.
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